...Conduzido a uma sala, fizeram-me sentar na cadeira
atrás da escrivaninha, de modo a ocupar o lugar central, cercado por mais de
uma dezena de policiais. Meu sono esvaía-se numa aflição nervosa, o raciocínio
misturava-se na cabeça, enquanto eles trocavam comentários em voz baixa, davam
risadinhas sarcásticas, sem me dirigir a palavra. Pouco depois, entrou um homem
baixo que julguei ter visto em algum lugar. Moreno, cabelos pretos ralos
recuados sobre a testa larga, barriga proeminente, trajava terno escuro e camisa de colarinho sem gravata. Numa reação
mecânica, os policiais se perfilaram, duros, calados, sérios, enquanto o
cidadão de meia-idade postou-se à minha frente, o umbigo encostado à mesa.
Continuei sentado, fitando-o. Nossos olhares cruzaram-se em setas.
— Consta no seu depoimento que você conheceu pessoalmente
o Marighella. Certo?
Continuei sentado, fitando-o. Nossos olhares cruzaram-se em setas.
— Sabe quem sou eu? — perguntou-me ele.
— Não senhor.
— Sou o coronel Jaime Mariath, Secretário da Segurança
Pública.
— Muito prazer — respondi por hábito de expressão.
— Levante-se! — gritou o homem irritado.
Fiquei de pé, aguardando a agressão física. Relutou,
olhou-me com desprezo e retirou-se da sala acompanhado pela mafiosa platéia. Um
jovem delegado, filho de um dos mais renomados juristas do país e autor de leis
de exceção, iniciou o seu trabalho como se fosse um catedrático em aula
inaugural. Tinha o aspecto limpo de quem passou um fim de semana repousante. O
rosto bem barbeado, os cabelos lisos em perfeito alinho, brilhantes, como se
estivessem ainda umedecidos, os óculos de lentes brancas, acentuavam a sua performance
de intelectual.
— Frei Betto, comigo você pode ficar à vontade. Aceita um
garro? Um café? Farei um interrogatório ideológico. Não me interessam os fatos ou
as pessoas. Quero conhecer melhor as suas idéias.
Talvez ele esperasse que eu fosse absolvê-lo de sua
cumplicidade com o aparelho repressivo, por julgar-se mais inteligente, mais
culto e, certamente, mais bem-nascido que seus colegas de serviço público.
Pensei nos arquitetos e engenheiros alemães que projetaram os fornos
crematórios do regime nazista: devem ter-se indignado quando os tribunais os
colocaram no mesmo nível dos oficiais e dos guardas encarregados de conduzir os
judeus à morte. O sono invadia-me como se uma nuvem pesada subisse dos meus pés
à cabeça. A visão embaralhava-se. Sorvi o café em busca de alento.
— Certo.
— Que impressões lhe ficaram?
— Um homem sedento de justiça que entregou a vida pela
causa do povo.
— Um homem que seqüestrou, matou, assaltou bancos e atirou
bombas, não é?
— É o que diz a polícia. Não respondo pelas acusações que
os senhores fazem a ele. Respondopelos contatos que tive — repliquei.
— Mas você sabia que ele era comunista, não é mesmo?
— Sabia.
— E como um cristão pode colaborar com um comunista?
— Para mim, os homens não se dividem entre crentes e
ateus, Bias sim entre opressores e oprimidos, entre quem quer conservar a
sociedade injusta e quem quer lutar pela justiça.
— Você reza pela bíblia de Marx?
— Embora reconheça a importância da contribuição de Marx,
rezo pela Bíblia de Jesus. No capítulo 25 do evangelho de São Mateus, quando
perguntam a Jesus quem se salvará, ele não diz que serão os crentes, os padres,
os ricos que ajudam a construir igrejas nem os democratas-cristãos. Diz:
"eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber... Os
justos perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos,
com sede e te demos de beber? Ao que Ele lhes responderá: a cada vez que o
fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes."
Portanto, são as atitudes bem concretas em prol da justiça
que nos salvam.
— Só falta dizer que Marighella era um homem da Igreja!
Procurei falar mais devagar para controlar melhor o
raciocínio, tomo se as idéias fossem pesadas cordas a serem cuidadosamente
erguidas da exaustão que me disseminava calafrios pelo corpo.
— Ele não estava na Igreja, mas estava no Reino, nessa
esfera da justiça e da igualdade que é o objeto principal da pregação de Jesus.
O papel da Igreja é anunciar o Reino.
— Reino de paz e de amor?
Dir-se-ia que sua pose altiva era mais de ura cientista
examinando a cobaia humana.
— Reino de paz e de amor — assenti.
Seus olhos acenderam por baixo das lentes brancas.
Acreditou-me cm xeque-mate:
— Quer dizer que você condena a violência, a luta armada?
— Não quero outra coisa senão a paz, muita paz. Por isso
luto contra a violência da burguesia sobre os trabalhadores, das estruturas da
sociedade capitalista.
— Inclusive com armas, contra a orientação da Igreja?
— Pelo que conheço da doutrina da Igreja, ela não
descarta, em última instância, o direito de os oprimidos se defenderem, com
armas, da opressão estrutural que os esmaga. Leia O Regime dos Príncipes, de
São Tomás de Aquino, e a encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo
VI.
— O que você quer é o comunismo?
— Quero uma sociedade justa, onde a vida do ser humano
socialmente mais insignificante esteja assegurada. O Deus no qual eu creio é o
Senhor da vida. Não me interessa se essa sociedade tenha o nome de socialismo,
de comunismo, de utopismo ou qualquer outro. Os rótulos não revelam o conteúdo.
— Você já leu Marx?
— Li, Engels, Lênin, Stálin, Mao, Guevara e Pascal, Kant,
Hume e Hegel. Nos dominicanos, aprendemos que quando se quer conhecer uma
teoria o mais indicado é ir diretamente à fonte.
— Leu que Marx considera a religião ópio do povo?
— É a burguesia que faz da religião um ópio do povo,
pregando um deus apenas senhor dos céus enquanto ela se apodera da terra.
O Deus da minha fé é aquele que se encarna em Jesus Cristo
c assume a libertação dos oprimidos. Cabe a nós cristãos provar que a afirmação
de Marx, válida para a Alemanha dos séculos XVIII e XIX, não pode ser
generalizada a todas as épocas e sociedades.
A noite avançava, minha boca abria-se preguiçosa em longos
bocejos, o delegado mostrava-se interessado na competição intelectual. A fim de
fazer-me cair em contradição, tentou outro terreno:
— Você acredita na virgindade de Nossa Senhora?
— Acredito, pois não tenho outra fé senão a da Igreja.
Perplexo, ele começava a encolerizar-se. Não admitia que
minhas posições políticas decorressem das verdades de fé. Cigarro entre os
dedos finos e longos, andava de um lado a outro da sala, como um professor segurando
o giz. Insistia cm arrancar da minha boca uma heresia qualquer. Da inquirição ideológica
passara à inquisição religiosa.
— Diga-me uma coisa: Jesus era um simples revolucionário
ou Deus feito homem?
Expliquei-lhe, com a cabeça apoiada entre as mãos, os
cotovelos sobre a mesa, que a fé identifica em Jesus de Nazaré a revelação
histórica e pessoal de Deus e a manifestação plena de seu Reino. O Deus que se
faz conhecer em Jesus é o que cura os cegos, faz andar os coxos, acolhe os
pecadores, dá pão aos famintos, põe o homem acima do sábado, anuncia um outro
Reino que não o de César. É o Deus que qualifica o Rei Herodes de raposa,
denuncia os poderosos, desmascara os fariseus tão apegados à letra da lei, amaldiçoa
os ricos com seus bens acumulados. Jesus foi um revolucionário por pregar a transformação
radical da pessoa — pela conversão e comunhão com o Pai — e da história, por um
novo e definitivo tempo de justiça e de amor...
Continua...
Trecho do livro: “Batismo de Sangue”
Muitos não sabem o significado nem a importancia para história do Brasil, das vidas retratadas no Livro do Frei Betto - Batismo de Sangue, recomendo que todos os cristãos possam lê-lo. Se prefereirem vá ao youtube e assitam o filme disponível de mesmo título. Abraços!
ResponderExcluirNota-se claramente que a religião entorpece os seres humanos deixando-os completamente suscetíveis ao seu domínio, o qual reflete de maneira sutil os interesses daqueles que detem o poder e a autoridade sobre povo. Aquele que tem o seu foco nos ensinamentos de Jesus percebe essa sutileza e como um animal preso na lama desse sistema tenta ferozmente se libertar dele.
ResponderExcluirBoa tarde a paz do senhor a todos acredito que não e dessa forma o evangelho esta salvando muitos ímpios e tirando das drogas e do mundo, mas devemos fazer uma revolução na nossa mente e fazer a diferença no nosso bairro temos tantas igrejas em um só bairro, mas ao mesmo tempo não temos mudança no bairro às igrejas só ficam paradas e não incomodam ninguém como se nem existisse e isso que esta errado.
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